A URBANODIVERSIDADE EM TUCURUÍ

Marília Amaro Correia, 
Programa de Pós Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia-PDTSA, Mestranda, Unifesspa, Bolsista Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), marilia.amaro41@gmail.com.

Edma Silva Moreira,
Programa de Pós Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia - PDTSA, Doutora, Unifesspa, edma@unifesspa.edu.br.

INTRODUÇÃO
A região amazônica, muito lembrada pela floresta e sua biodiversidade natural, é pouco destacada por sua diversidade urbana. A diversidade urbana da Amazônia está ligada, em geral, aos processos de ocupação derivadas da lógica do capital que aconteceram, principalmente, a partir de 1960, e que fizeram com que a região sofresse grandes impactos e transformações socioambientais. Em meio aos processos de mudanças na região, a resistência de diversos grupos sociais amazônicos esteve sempre presente, contribuindo para a construção de um espaço social plural e diversificado e para a formação de uma urbanodiversidade, como destaca Trindade Júnior (2013).

Este trabalho faz uma análise sobre a urbanodiversidade no sudeste do Pará, com enfoque na cidade de Tucuruí, que sofreu intensa modificação com a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada na década de 1980. Considerando a categoria urbanodiversidade questiona-se: pode-se pensar em um hibridismo urbano em Tucuruí? Pretende-se demonstrar que Tucuruí configura-se, atualmente, num modelo híbrido de urbanização, entendido como a interpenetração de tipologias de cidades pequenas, que serão apresentadas no desenvolvimento da pesquisa, a saber: as cidades-empresa, as cidades rodoviárias e as cidades tradicionais. (TRINDADE JR. 2013). Para tanto, foi feito um estudo bibliográfico-documental e contou-se com o conhecimento empírico das autoras sobre a cidade de Tucuruí, o que colabou para a percepção do objeto.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Em toda a região do sul e sudeste do Estado do Pará os movimentos sociais têm se manifestado contrários à lógica perversa do capital, no intuito de resistirem, enfrentarem e alterarem o modelo dominante. Na região, a violência no campo e na cidade evidenciam o cenário de conflitos existente entre sujeitos que resistem à dominação do capital e àqueles que detém o poder. O embate é extremamente perigoso, e o processo de enfrentamento se mostra, em muitas das vezes, tímido e frágil.

O processo de expansão capitalista na região tem sido agressivo, espoliativo e destrutivo (HÉBETTE, 2004). A todo momento, a resistência à hegemonia econômica tem se posicionado no sentido de criticar o modelo com que tem se desenvolvido a apropriação e a exploração dos recursos minerais nas regiões sul e sudeste do Pará, visto que, pela ótica dos movimentos sociais, esse formato gera riqueza para poucos e miséria para a maioria (GOMES DA CRUZ NETO; GRUDE, 1990), além de insegurança e desesperança para a população pobre local. As consequências desse ‘modus operandi’ de ocupação estão presentes nas formações dos núcleos urbanos amazônicos. 

Enquanto a ideia de cidade se faz pela circunscrição entre os limites geoterritoriais, o urbano se compõe de modos de agir e conviver constantes da cidade, são padrões de comportamento, e que podem ser empregados, ainda, para além da cidade (TRINDADE JR., 2013). Então, daí há de se falar em urbanodiversidade, presente nas diversas formas de sociedades amazônicas.

Para Trindade Júnior, 2013:

A urbanodiversidade assim entendida é revelada não somente por diversas formas de cidades e pela existência de múltiplos tipos de urbanização que decorrem normalmente de processos originados externamente à região, mas também por formas complexas de espaços que indicam a hibridização de relações definidas por contatos e resistências em face desses movimentos de diferentes naturezas que chegam à região. (TRINDADE JR., 2013, p. 18).

Essa urbanodiversidade, advinda dos processos de mudanças que aconteceram, principalmente, a partir da década de 1960, com a proposta estatal de integração regional e que fez com que a Amazônia passasse por inúmeros impactos e transformações (TRINDADE JR, 2013), reflete a forma, ou lógica mercadológica, de ocupação, que dá sentido à Amazônia como fronteira econômica e de expansão urbana ou, conforme Monte-Mor (2004), de urbanização extensiva, a qual expande as condições urbano-industriais de produção e articula o urbano e o rural em uma única e integrada forma urbana, “carregando também consigo as especificidades de polis e da civitas: a práxis urbana, a política e a cidadania” (MONTE-MOR, 2004, p. 115).

Trindade Jr (2013, p.11), sobre a urbanodiversidade na Amazônia, elenca, as pequenas cidades em três tipos: as cidades-empresa, as cidades rodoviárias e as cidades tradicionais. As cidades empresas, estariam associadas ao que Santos (1995) chama de “grandes objetos” voltados à produção e acumulação de capital, e que foram projetadas para dar apoio logístico a esses empreendimentos, a exemplo da Vila Permanente, em Tucuruí, construída para atender à gigantesca usina hidrelétrica instalada naquele município. As cidades rodoviárias da Amazônia Oriental são caracterizadas pela forte presença migratória de agentes ligados às atividades de expansão econômica, como a pecuária e a madeireira. Por sua vez, as cidades tradicionais são as menos impactadas pelas investidas do capital e, por terem raízes em uma colonização mais antiga, guardam traços culturais remanescentes ainda do passado e com forte apelo à floresta, rios e práticas sociais remotas.

Ao se admitir a urbanodiversidade na região, entende-se o porquê das populações se reorganizam ou resistem a uma urbanização planificada, e percebe-se que as políticas homogêneas para as cidades na Amazônia são um contrassenso (TRINDADE JR., 2013), pois não atendem às inúmeras configurações socioespaciais urbanas existentes. 

Pode-se tomar como exemplo as políticas habitacionais nacionais, e a reprodução da política do Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV, que apresenta a repetição do modelo padronizado e utilizado em qualquer cidade do Brasil, com os mesmos projetos arquitetônicos e materiais utilizados para a construção, e desconsidera as diversidades culturais regionais ou até mesmo entraves estruturais e geográficos.

Em Tucuruí, foi instalado um residencial do PMCMV em área de servidão administrativa, que abriga um linhão de transmissão de energia elétrica da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, e que, além disso, tem-se que o terreno usado é fisicamente “amorrado”. O afirmado consta da documentação emitida pelo Ministério Público Federal: 

o conjunto habitacional fica numa área de declive e as obras de saneamento e drenagem não foram realizadas. Há perigo de deslizamentos e alagamentos e os sucessivos abandonos da construção provocaram deterioração, rachaduras e fissuras nas residências (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2018, n.p).

O imóvel em comento, denominado Cristo Vive, trata-se de um empreendimento com mil unidades residenciais concebido pelo PMCMV, em 2012, com a importação de um projeto uniforme e nacional, sem ser adequado ao cenário local, quanto a fatores geográficos ou sociais. O residencial foi ocupado em setembro de 2015, antes mesmo da conclusão de suas obras, pela população que necessitava de moradia, sob a alegação de que as habitações estavam se deteriorando, haja vista a paralização da construção. O residencial Cristo Vive, perpassou por diversos procedimentos administrativos e demandas judiciais e, até o momento, ainda está em processo de estabilização jurídica, quanto à propriedade das residências.

Em Tucuruí, considerando-se a categoria da urbanodiversidade, pode-se nitidamente perceber o hibridismo que se quer aqui demonstrar, onde misturam-se aspectos distintos das tipologias empregadas para as pequenas cidades na Amazônia, pois de uma cidade ribeirinha (cidade tradicional), até a década de 1960, com pouco mais de 20 mil habitantes, recebeu um inchaço populacional a partir dos anos 70, com a construção da usina hidrelétrica, e da Vila Permanente (cidade empresa) e chegando a ter aproximadamente 150 mil residentes no auge da obra, na década de 1980, com a migração de trabalhadores da construção civil e também do setor agropecuário e madeireiro (cidade rodoviária). 

A Vila Permanente da Eletronorte foi construída para ser um núcleo habitacional destinado a abrigar as instalações administrativas, comerciais e as residenciais dos trabalhadores técnicos e graduados, ligados à usina hidrelétrica. Ela possui centenas de casas com padrões e infraestrutura superiores à realidade urbana da cidade originária (Tucuruí), que dista dali 7 quilômetros, com muita precariedade estrutural urbana. 

Ao chegar no Município de Tucuruí, pela rodovia PA-263, após atravessar a barragem da usina hidrelétrica, defronta-se com um aglomerado de construções desordenadas, que limitam com a Vila Permanente, tendo apenas poucos metros de distância para separar a planificada cidade empresa, do conhecido KM 11, de onde embarcam e desembarcam milhares de pessoas rumo às inúmeras ilhas localizadas no lago da hidrelétrica. Até hoje, após diversas tentativas de desocupação, por estar em área reservada à usina, a Eletronorte não conseguiu desmobilizar essa localidade, que vem se expandido.

Sobre as ilhas, que são centenas, pode-se também observar as suas peculiaridades. Não se tem uma região eminentemente rural, nem há de se falar em zona urbana, porém os hábitos das populações são, em sua maioria, urbanos, pois as pessoas que habitam esses territórios migraram de Tucuruí, após a fase final da construção da Hidrelétrica, a partir de 1985. Parte dos chamados “ilheiros” são descendentes dos antigos moradores da cidade tradicional, que imperava anteriormente à construção da hidrelétrica e guardam algumas tradições das populações ribeirinhas. Outros vieram para trabalhar, em geral, na obra da usina ou na indústria madeireira e, alguns, ainda, têm vivência na atividade agropecuária.

Atualmente, o município de Tucuruí conta com pouco mais de 100 mil habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA, 2010) e, por meio de sua configuração espaço-social, percebe-se que os grandes projetos implementados na região, como a Usina Hidrelétrica em Tucuruí, impactaram o modo de vida das populações tradicionais, muitas tendo sido compulsoriamente deslocadas, inclusive indígenas, e o que se tem no momento, em Tucuruí, é uma cidade fracionada em diversas realidades internas, confirmando a presença de um hibridismo entre os tipos de cidades pequenas da Amazônia, descritas no contexto da urbanodiversidade. Desse modo, a partir dessa constatação, as políticas públicas direcionadas para atender a população local precisam respeitar essa diversidade e, somente assim, garantirão o efetivo atendimento dessa tão heterogênea construção espaço-social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A urbanodiversidade é característica marcante nas cidades amazônicas, e Tucuruí, no sudeste do Pará, apresenta um hibridismo entre as tipologias de cidades pequenas, com nuances entre a cidade empresa, rodoviária e tradicional. 

A reflexão aqui desenvolvida atesta que o Estado brasileiro, que carece de efetivar maior descentralização sobre a implementação de políticas territoriais e urbanas na Amazônia, não tem considerado a diversidade urbana a e configuração das cidades da região, que recebem um tratamento homogêneo, praticado e elaborado para o restante do Brasil, capaz de desconfigurar o que ainda resta de tradições, cultura e dignidade dessa gente. 

As cidades amazônicas devem se desenvolver considerando as especificidades locais. A população precisa participar dos processos de gestão e decisões que irão trazer transformações do lugar e modo como vivem. 

REFERÊNCIAS
GOMES DA CRUZ NETO, R.; GRUDE, J. P. Sudeste do Pará: Um estudo de sua história. Volume I – Tucuruí e Carajás. Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular – CEPASP. Marabá – PA, 1990.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pa/tucurui.html. Acesso em 23 out. 2020.

HEBÉTTE, J. Cruzando a Fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Vol. III. Belém: UFPA, 2004.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Mais de duas mil pessoas participam de audiência pública sobre residencial do Minha Casa, Minha Vida ocupado em Tucuruí (PA). In: Jusbrasil. 2018. Disponível em: <https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/437711524/mais-de-duas-mil-pessoas-participam-de-audiencia-publica-sobre-residencial-do-minha-casa-minha-vida-ocupado-em-tucurui-pa?ref=serp>. Acesso em Dez. 2019. 

MONTE-MOR, R. L. M. Urbanização e modernização na Amazônia contemporânea. In: LIMONAD, E.; HAESBAERT, R.; MOREIRA, R. (Orgs.). Brasil, século XXI: por uma nova regionalização? Agentes, processos e escalas. São Paulo: Max Limonad, 2004. p. 112-122.

SANTOS, M. Os grandes projetos: sistema de ação e dinâmica espacial. In: CASTRO, E.; MOURA, E.; MAIA, M. L. (Orgs.). Industrialização e grandes projetos: desorganização e reorganização do espaço. Belém: Edufpa, 1995. p. 13-20.

TRINDADE JR., S-C. C., Das “Cidades na Floresta” às “Cidades da Floresta”: Espaço, Ambiente e Urbanidiversidade na Amazônia Brasileira. Papers do NAEA nº 321. Belém, 2013.

Comentários

  1. A cidade tradicional seria representação da resistência a esse modelo de políticas urbanas implementadas pelo Estado? E outra, como planejar uma cidade que contempla esse hibridismo?
    Paloma de Oliveira Santos

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    1. Sim, em geral, cidades tradicionais, por serem a primeira manifestação urbana local, atuam como pontos de resistência a uma política de planificação. Porém, quando o hibridismo urbano é percebido, essa resistência passa a ser mais discreta. O planejamento urbano contempla o hibridismo quando reconhece que são variadas as culturas, modos de vida e expectativas sócio-econômicas das populações que convivem e constroem determinado espaço urbano.
      - Marília Amaro Correia

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  2. Estratégias nacionais e internacionais promoveram o desenvolvimento regional para a Amazônia que se pautaram em projetos voltados para capital, tornando o desenvolvimento na Amazônia economicamente desigual, setorialmente heterogêneo e socialmente excludente e ambientalmente desequilibrado, voltados para atender uma pequena parcela da sociedade, desconsiderando os quilombolas, ribeirinhos, indígenas, camponeses, entre outros, logo todo esse processo de expansão passa por Tucuruí. Nesse sentido, quais as principais politicas de desenvolvimento, sobretudo politicas de urbanização, o estado utilizou-se de estratégias para desenvolver na Amazônia, considerando desde as décadas de 60 e 70 até os dias atuais? Tâmara Karime Lima dos Santos

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. As políticas desenvolvimentistas pensadas para a região Amazônica visavam o desenvolvimento econômico da região. A urbanização pensada nessas políticas contemplavam apenas os trabalhadores das obras e era organizada por níveis de poder e escolaridade. A maior parte dessas políticas partiram do projeto “Operação Amazônia” de 1966, o qual tinha a proposta de reformular todos os instrumentos e programas já atuantes na região amazônica, de modo a atrair os investidores nacionais e estrangeiros. Foi por meio da ideologia desenvolvimentista da “Operação Amazônia” que se desenvolveu o Projeto Grande Carajás e, assim, construiu-se a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, para se aproveitar o potencial energético do rio Tocantins e viabilizar empreendimentos minerários e agropecuários que garantiriam o desenvolvimento da Amazônia oriental.
      -Marília Amaro Correia

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  3. Bom dia às autoras! E parabéns pela pesquisa e pelo artigo.

    O caso de Tucuruí me levanta muita curiosidade e se apresenta muito parecido com outros que conheço, como o caso de Marabá. Uma cidade com fragmentos de origens muito diferentes. Neste sentido, queria perguntar se vocês tem realizado a cartografia da cidade, identificando esses fragmentos.
    E também, como vocês relacionariam as políticas públicas urbanas (em Tucuruí) sobre cada um desses fragmentos ou cidades?

    De novo parabéns e obrigado pela contribuição.

    Att
    Sergio Moreno

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Professor, ainda não tivemos a oportunidade de realizar a cartografia da cidade, o que, certamente, enriqueceria a pesquisa. Sobre as políticas públicas, elas têm sido planificadas, praticamente sem considerar as especificidades de cada fragmento. Obrigada pela leitura do texto.
      -Marília Amaro Correia

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